Vivemos com alegria a quadra nazarena de nossa Arquidiocese de Belém e da cultura paraense e amazônica. Nossa Senhora de Nazaré, pelo carinho de Deus com seu povo, é a força catalisadora que reúne multidões originais em sua composição e capacidade de gerar costumes na sociedade. Ninguém resiste ao Círio! E Círio de Nazaré se vive, não adianta descrevê-lo com palavras!
Tendo vivido pela primeira vez o núcleo de nossas celebrações, ouso ensaiar algumas observações, destinadas a amadurecerem no correr dos anos. Brota espontaneamente e a pergunta sobre as causas de uma tamanha diversidade encontrada no Círio de Nazaré, compactada num único hino de louvor a Deus, embalados pelas mãos de Nossa Senhora e abrigados à sombra de seu manto. Estamos diante de uma das raras ocasiões em que as diferenças são superadas sem violência ou contestações, onde não há clichês para enquadrar as pessoas e os grupos, pois todos se tornam apenas e tão somente devotos, quando brincam diante da face de Deus em nossas ruas, alegrando-se em estar com os filhos de Deus (Cf. Pr 8, 29-31).
A festa religiosa traduz a dimensão lúdica do ser humano de forma original e profunda. A festa significa o inverso da vida de cada dia. Festa significa liberdade em relação ao trabalho. Festa é um alegrar-se depois do pranto e da tristeza. É um estar juntos depois da solidão e do isolamento. Toda festa deseja uma eternidade profunda! O bom humor e a boa disposição não são pressupostos da festa, enquanto a tristeza e a dor podem fazer, qual obscuro pano de fundo, com que o ouro da festa brilhe com mais fulgor. A saciedade não é parte integrante da festa, mas a fome, a sede e a ansiedade. Não se pode cantar e dançar com o estômago cheio! A riqueza não faz parte da festa, mas talvez a pobreza e, sem nenhuma dúvida, a indigência (Cf. Missa, mensagem de vida, Theodor Schnitzler, Paulinas, São Paulo, 1978).
Os sapatos, sandálias e peças de roupa perdidos no Círio talvez contem a história de muitos que se sentiram livres para sujarem os pés e se molharem, como São Francisco livre e saltitante nos caminhos de Assis! Ou quem sabe, podiam ser parecidos com anjos que cantam a glória de Deus no Céu e a paz na terra aos homes por ele amados!
No Círio, suor, lágrimas, sorrisos e até o sangue podem fazer parte do exercício comum da alegria. Impressionaram-me os olhares das pessoas encontradas na multidão, nos quais se falava de dores e angústias, esperanças e gratidão. Os promesseiros se multiplicaram por milhões, escondendo e revelando o mistério humano, envolvendo a todos, sem exceção.
A explicação do fenômeno do Círio demandará outros mais de duzentos anos! Mas parece-me encontrar mais um capítulo, lá dentro, no coração. Somos forçados a ser rápidos e objetivos na vida, pois temos que ganhá-la com nosso trabalho. No Círio, as coisas não funcionam assim. No Círio, trata-se apenas de deixar-se levar, por ondas de gente e de sentimentos, com as leis da corda, comandada, quem sabe me dizer, por quem? É que queremos, conduzidos por aquela que foi chamada “Sede da Sabedoria”, apenas estar diante de Deus. No Círio não se reclama do tempo ou do cansaço, o Círio se vive! E aí as pessoas se sentem acolhidas e amadas, misteriosamente aconchegadas ao colo da Mãe. Não sei quantas vezes ouvi, nas diversas romarias, crianças, adolescentes, jovens e adultos balbuciarem “minha mãe”.
Milhões de mãos se elevaram voltadas para frente, como os ícones da “Virgem orante” das catacumbas dos primeiros séculos da Igreja. No translado rodoviário para Ananindeua, vi um frentista de um posto de combustíveis, impavidamente perfilado, mão direita elevada, mão esquerda no peito, mas mão de criança, olhos molhados de suor e lágrimas e fechados para implorar o carinho da Mãe de todos os paraenses, simbolizada na imagem peregrina. Ouvi, na corda, um casal de namorados, promesseiros voltados para o próximo matrimônio. Apenas pediram orações. Olhares de minutos! E muitas pessoas que trocaram olhares ou comigo, em todos os percursos que fizemos, entendem tais gestos silenciosos.
Inumeráveis as bênçãos que espalhei em nome do Senhor. É que não vivemos somente da razão, mas precisamos, sim, de afeto, de muito trato pessoal, de amizade, olhar amigo que eleva e promove. E como Deus é amor, quem ama permanece em Deus e fizemos uma magnífica experiência de sua presença amorosa. E a Mãe nos introduziu nessas coisas de Deus
O Círio continua, pois é nossa maior riqueza! Sejamos dignos daquilo que recebemos de graça!.
Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo metropolitano de Belém do Pará
fonte: Canção Nova
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